Vai muito além do céu




    Ela não sabe quando tudo começou. Sabe que é uma história de amor que tem forma, lugar, som, sabores. A forma é de um "pássaro de metal", o lugar é de onde eles decolam e pousam, o som é de turbinas e os sabores... ah!, os sabores são muitos. Sabores de infância, de momentos de alegria, de despedidas, de reencontros, de liberdade e quantos mais outros que ela nem sabe dizer.

   Ela realmente não sabe exatamente quando tudo começou, mas a forma como tudo começou, ela desconfia. Ela acha que esse amor já nasceu com ela, mas pode ter sido também na sua infância, quando o vizinho do apartamento onde morava era um aeroporto. Era movimentado, então quando muitos se incomodavam com os barulhos de turbina que eram o pesadelo auditivo diário de quem morava perto, para ela eram como sinfonias que tocavam sua alma. Todo dia era a mesma coisa, era só ouvir barulho de turbina de um avião que acelerava para decolar, que ela largava o que estivesse fazendo e corria para a janela. Deveres de casa, televisão, brincadeiras, refeições, nada disso importava quando ela podia ver o avião passando com toda a velocidade, levantando voo e ganhando o céu. Era como se a imaginação dela pudesse ganhar o céu também.

  Como a vista da janela do quarto dela para o aeroporto era tomada por árvores, e ela só podia acompanhar o movimento dos aviões por frestas, ela começou a pedir que seus pais a acompanhassem, vez ou outra, ao mirante do aeroporto para que pudesse vê-los mais de perto. E ali ela poderia ficar horas, um dia inteiro. Adorava ver o embarque dos passageiros, imaginar para onde estavam indo e ver os aviões sumindo entre as nuvens após a decolagem. Ela lembra, como se fosse ontem, da primeira vez que foi ao aeroporto internacional levar sua avó para viajar. Nunca havia visto aviões tão grandes, e foi aí que ela viu que seus sonhos também poderia ser bem maiores.

   Quando ela se mudou de casa, deixou de ser vizinha do aeroporto local, mas ganhou uma vista que a permitia ver os faróis dos aviões que decolavam do aeroporto internacional. E da varanda, toda noite, ela olhava os aviões decolando e sua imaginação decolava junto.

   Não demorou muito e veio sua primeira viagem de avião com a família para a praia, assim como sua primeira viagem internacional, a segunda logo depois, sua primeira vez em um dos maiores aeroportos do mundo, com modelos de aviões que ela só via pela internet. Mas ainda assim ela nunca se acostumou, queria cada vez mais, tinha sede de aviões e aeroportos que sempre mexeram tanto com ela.

   Até que um dia, o programa de televisão Chegadas e Partidas do canal GNT fez com que ela se despertasse para muitos de seus sentimentos e realmente entendesse de onde vinha todo esse fascínio. O programa, que parece ter sido feito para ela, fez com que descobrisse que seu amor por aviões vai muito além do céu. Ficou claro que o que lhe chamava a atenção era para a quantidade de sentimentos e emoções que existem em um aeroporto, e como os aviões são capazes de trazer e levar alegrias, tristezas, emoções, sonhos, descobertas, asas, liberdades. É ali, em saguões, salas de embarque e dentro de aviões que tem pessoas se despedindo de quem vai e de quem fica, pessoas que esperam esses grandes "pássaros de metal" trazerem de volta quem tanto fez falta, quem entra em um deles cheio de sonhos, expectativas, medos, ansiedades e felicidade pelo que está por vir, e quem espera que a viagem traga toda a liberdade e a renovação de vida de que tanto precisava e com que tanto sonhou.

   Desde então, ainda mais do que antes, aeroportos passaram a ser ainda mais os lugares favoritos dela. É onde ela gosta de estar e reparar o vai-e-vem de tantas pessoas de tantas raças, idades, religiões, culturas, idiomas, crenças, mas que possuem em comum os mesmos sentimentos quando o assunto é chegadas e partidas. Ela gosta de observar os aviões que decolam levando sonhos e planos, e aterrissam trazendo saudade e reencontros de tantos lugares que nem imaginamos.

   Hoje ela já cresceu, mas o mesmo coração de menina que acelerava com o barulho das turbinas ainda se encanta com cada aeroporto, com cada avião e com cada sentimento que fica à flor da pele quando painéis eletrônicos e auto-falantes anunciam um novo portão de embarque, um novo voo e novas emoções. 

   A menina que colecionava fotos de aviões em um caderno, hoje coleciona momentos sendo a passageira que um dia ela tanto observou e com que tanto sonhou.


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