Luz interior

    

   Ela abriu os olhos e logo os fechou novamente. A cama estava muito boa, o sono, enorme, e ela não se lembrava de nada que tivesse que fazer naquele dia. Fez força para continuar o sonho de onde foi interrompido. Tinha uma vaga lembrança de que era uma coisa boa, uma situação que não se parecia em nada com o dia-a-dia dela. Como não conseguiu, abriu os olhos, se espreguiçou e se levantou. Olhou em volta. Silêncio. A luz do sol, ainda fraca pelo início da manhã, iluminava o corredor. Ela sentiu uma leve melancolia por saber que o dia levou embora a noite que foi tão boa. Caminhou até a sala, olhou pela janela. Mesmo sendo sábado, havia pessoas passando apressadamente pela calçada. Devia ser dia útil para elas. Que sorte a delas - pensou. Dias úteis trazem correria e obrigações que expulsam pensamentos vagos da cabeça. E a dela funcionava demais, bem mais do que queria. Saiu da janela e se deparou com a mesa de centro bagunçada: pratos com restos de comida, tocos de cigarros no cinzeiro, a jarra de flores no canto dando espaço às taças com restos de vinho e a marca do batom dela. O batom novo que ela comprou para a festa que havia ido na noite anterior, e que acabou com um convite para que um estranho bonitão subisse ao seu apartamento. "Não o chame para subir de cara", opinou uma amiga. "Você acabou de conhecê-lo", disse uma outra. Mas ela não quis saber, estava cansada de ouvir a opinião dos outros e preferiu ouvir seu coração, que pedia para não terminar mais uma noite em casa, sozinha. Ela já era muito sozinha, então que mal fazia tentar a sorte com alguém que pareceu ter gostado dela? Mas parece que, mais uma vez, foi um gostar de uma noite só, como tantos outros que ela já havia vivido. 

   Quando pensou em voltar para a cama, passou em frente ao espelho que fica no corredor, parou e se olhou. Estava com um coque nos cabelos, levemente dourados ao refletir a luz do sol, um resto de maquiagem da noite anterior e cara de sono. E então, algo nela despertou: viu que, apesar de não estar com nada no lugar, era bonita. Se achou linda, mesmo toda descabelada e recém acordada. De onde será que surgiu essa admiração por si mesma, essa luz interior? Não é sempre que ela acontecia. Resolveu levá-la a sério e, ao invés de seguir para a cama, retornou para a sala. Limpou a bagunça, tomou um banho e se permitiu colocar uma roupa de que tanto gosta. Decidiu que o banho tiraria a sensação de vazio que amanheceu com ela, e que a roupa reforçaria a autoestima que por vezes a abandona. Passou um lápis nos olhos, o batom da noite anterior, pegou sua bolsa e ganhou as ruas. Hoje ela não ficaria com seus pensamentos em casa, não hoje. 

   Almoçou no restaurante que gosta, entrou em lojas, comprou roupas novas e se permitiu sentar no banco de sua praça preferida, com um doce que mal se permitia comer pelo receio de engordar. Pensou na vida enquanto observava o movimento dos pássaros que pousavam na beira da fonte para beber água. Sentiu-se grata por ter ajudado a si mesma não ficando em casa. Adorava seu lar, seu espaço, sua intimidade, mas viu que quatro paredes não suportam sua mente quando resolve divagar demais. 

   Ao retornar para casa, no fim da tarde, já não pensava nos amores que não deram certo e nem no seu dia-a-dia solitário, com sua família vivendo em outra cidade e suas amigas sempre ocupadas. Reconheceu que foi bom passar um dia consigo mesma, avaliou-se como uma ótima companhia. Já pensava, inclusive, na comida que iria pedir para a noite e em qual filme iria assistir. Estava animada com a nova companheira que acabara de descobrir.

   A luz do sol agora estava bem fraquinha, marcando o fim do dia. Mais cedo, ele anunciava o início de mais um dia vazio, mas ao ir embora com a mesma luz dourada, deixou-lhe o aprendizado de que nada é como um dia após o outro, ainda mais quando, em cada um deles, somos preenchidos pela luz interior e companhia de nós mesmos.

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